Crônica: Carpintaria dos Pedidos Não Feitos
Numa daquelas vilas pequenas, escondidas entre colinas secas e caminhos de pedra, tudo era feito à mão e levado no peito. As casas tinham mais poeira que tinta nas paredes, e as pessoas sabiam o nome dos filhos dos vizinhos antes mesmo de saber o próprio destino. Ali, o futuro costumava chegar com passos lentos — e esperança, quando vinha, vestia roupa de trabalho.
Na marcenaria modesta do vilarejo, entre tábuas empilhadas, ferramentas gastas e o cheiro quente da madeira recém-cortada, um homem de mãos firmes e olhar calmo preparava o entardecer. Seus móveis duravam mais que promessas, porque nasciam com o cuidado de quem conhece o tempo das árvores e o silêncio das famílias.
— Filho… — disse ele, enxugando o suor da testa — o senhor Eliézer, aquele ali do beco que pega sol só de manhã, veio aqui ontem. Disse que o banco da entrada da casa está com a perna frouxa. Vai lá amanhã cedo ver isso? Vê com carinho.
O jovem assentiu sem palavras. Era de ouvir fundo — e de ver fundo também. Pegou as ferramentas com a tranquilidade de quem sabe onde pisa e saiu logo ao raiar do dia seguinte, sem pressa e sem alarde.
Dois dias depois, Eliézer apareceu outra vez na oficina. Caminhava devagar, os olhos arregalados, o semblante entre atordoado e tocado.
— Ô Zé… posso falar com o senhor um instante?
— Pode sim, homem. A porta tá aberta.
Eliézer parou diante dele, tirou o lenço da cabeça, apertando-o entre os dedos. Respirou fundo.
— Olha… eu pedi só pra firmar o banco da entrada, aquele velho de três gerações. E sim, ele está como novo. Mas… Zé… o que aconteceu lá em casa foi mais do que martelo e prego.
José ergueu os olhos, atento.
— Ele trocou as traves da janela do quarto da minha esposa. A gente mal dormia com o vento gelado entrando por ali… Agora a casa segura o calor. E mais: reforçou o estrado da cama do meu filho, que vinha acordando com dores no corpo. Desde então, dorme tranquilo.
Eliézer fez uma pausa, engolindo seco.
— E ainda mexeu no suporte dos vasos da varanda… minha mulher chora toda vez que vê as flores firmes ali. Disse que sentiu vontade de cantar enquanto regava hoje de manhã. E pra completar, ele deixou uma prateleira nova na cozinha… e nela, um cântaro de barro com água fresca. Água fria, Zé. Como se soubesse que a gente nem tinha mais pote bom pra guardar o que refresca.
José se aproximou devagar, encostando-se à bancada.
— Pois é…
— Mas Zé, me diga… como eu pago por tudo isso? Eu não pedi, e nem tenho com que pagar. O banco, vá lá… mas tudo o mais? Isso foi coisa de quem enxerga a alma da casa, não só a madeira dela.
José sorriu com doçura, quase em suspiro.
— É o jeito dele… ele não faz só o que pedem. Faz o que é necessário. Ele ouve o que a boca não diz, e vê o que o coração esconde.
Eliézer esfregou os olhos, tentando disfarçar a emoção.
— Sabe, Zé… minha casa ficou mais leve. Nem sei explicar. Parece que o ar mudou. Até os silêncios têm outra cor.
José assentiu, como quem já sabia.
— Tem gente que trabalha com as mãos… ele trabalha com o coração junto. Onde ele põe os pés, brota cuidado. É como diz o ditado: “quem planta com carinho, colhe milagre.”
Eliézer sorriu, os olhos úmidos, o peito cheio.
— Olha… eu saí de casa achando que ia falar de um banco. Mas parece que quem foi consertado… fui eu.
José respirou fundo, encarando o entalhe da porta como quem olha além da madeira.
— Às vezes, meu amigo… o que se quebra não faz barulho.
Ficaram em silêncio. Um silêncio bom, daqueles que não precisam ser explicados.

